quinta-feira, 28 de maio de 2009

VINHO X SEXUALIDADE


além do ato de sorver gordas talagadas
coroando-as com um estridente estalar de
língua. Apreciar implica entrega e deleite.
Beber apressadamente só faz rebaixar o apreciador à
condição de mero aprendiz de amante, sem noção dos prazeres
ocultos sob pequenas nuanças. Degustar é um ritual
praticado sob a empatia gole-a-gole, num crescendo sutil
que estimula nossa sensibilidade, incitando-nos a alçar
vôos imaginação afora, onde o vinho permeia a própria
sensualidade humana.
Há muito pretenso conhecedor de vinho pecando pela,
digamos, ejaculação precoce. Quantas vezes um troglodita
não apanha uma garrafa onde o vinho evoluiu em ritmo
lento de reações da química fina, quase repouso interno e,
sem o menor cuidado, a manuseia com movimentos bruscos,
culminando por arrancar-lhe a rolha num descuidado
golpe seco final. Um verdadeiro estupro! Em seguida, sem
a menor sensibilidade, despeja o vinho num recipiente
qualquer e sorve-o num glu-glu automático, como se fosse
uma bebida sem alma. Se, em lugar da garrafa de vinho
fosse uma mulher, este egoísta seria um cavalgador solitário
que não prestaria atenção à sua companheira que,
coitada, não teria a menor chance de chegar lá...
Embora a sensualidade original tenha supostamente
se perdido na fábula da maçã proibida e nos conselhos
rasteiros da serpente, nada nos tira a certeza de que tudo
começou num dia como outro qualquer, na chatice do primeiro
condomínio fechado da humanidade, o Paraíso.
Ali, Adão e Eva, embalados numa conversa-vai-conversa-
vem, inventaram de tirar a limpo suas diferenças
físicas. Corações disparados, adrenalina à toda, ocultaram-
se entre as ramagens de uma paradisíaca videira,
tornando-a o primeiro motel da Terra. Estava inaugurada
a sexualidade humana! Momentos após, saíram disfarçando,
folha de parreira cobrindo a genitália e assobiando
aquela música do Jota Quest: “fácil, extremamente
fácil...”.
Por esta natural entrega aos prazeres da carne, o casal
original foi botado para correr... correr mundo afora e,
como resultado, somos bilhões de seres humanos sobre a
face do planeta embalados pelo pecado original.
Muitas vindimas mais tarde, as exuberantes uvas
das encostas do Monte Ararat foram transformadas em
vinho por Noé, empolgado que estava pelo sucesso de
sua arca, após um cruzeiro que tinha a nobre missão de
salvar do dilúvio casais sexualmente ativos para a perpetuação
das espécies. Como comemoração do grande feito,
transformou as uvas em vinho, tomou um porre bíblico e,
empolgado, saiu nu da barraca mostrando todas as suas
vergonhas. Era o vinho trazendo liberação do comportamento
humano.
Em conexão com estes antecedentes, a mitologia grega
vinculou o vinho à sensibilidade humana, de pronto oficializando
uma descrição que, com boa dose de imprecisão
cronológica, explicava a sua descoberta. Consta que a
revelação do vinho coube ao deus Dionisio, protetor do
vinho e da viticultura, o mesmo Bacco dos romanos. Ele
vivia no Olimpo, mas passeava freqüentemente pelas planícies
gregas para atividades populares, acompanhado de
faunos e musas.
Certo dia, brincando de pega-pega, no meio dos
parreirais às margens de um lago, mordiscavam cachos
de uvas, lançando alguns deles nas águas do lago. Este
embalo deve ter se avançado no tempo até que todos,
exauridos, estiraram-se na relva e adormeceram. Mais
tarde, acordaram sedentos e correram para a margem
do lago em busca de água. Esta, repleta de cachos de
uva madura, formava com eles um composto novo, uma
mistura que fermentou e se alcoolizou. A bebida, além de
saciar a sede, levou-os a sentir um êxtase inebriante de
alegria e excitação.
Experimentaram de corpo e alma as qualidades afrodisíacas
daquele vinho que, para todo o sempre, foi eleito
o mensageiro do prazer e da alegria, consumo obrigatório
em reuniões festivas.
Esta tradição grega desembocou na invenção dos
primeiros recipientes para tomar vinho. Contam as más
línguas que a forma destes primeiros cálices foi influenciada
pelo costume da época de se derramar o vinho no
colo da companheira e sorvê-lo pouco abaixo de seus
seios. A partir dai, os primeiros cálices tomaram a forma
dos seios de uma mulher de beleza exemplar na Antiga
Grécia: Helena de Tróia. A conformação rasa e bordos
sutilmente alargados, eternizaram a delicadeza daqueles
seios formosos.
O vinho e a sensualidade seguiram sempre unidos,
como no intrincado jogo amoroso, no qual existe sempre
um ritual a ser cumprido a dois. Um dos momentos
mais importantes do relacionamento homem-mulher está
justamente no despertar do interesse, nos olhares furtivos,
roubados ao controle das outras pessoas, num jogo
malicioso que desemboca numa crescente atração. É
justamente assim que começa a degustação de vinhos: um
flerte inicial de avaliação visual. Com o cálice de vinho à
frente, mergulhamos num jogo sensorial de descobertas de
cor, brilho, matizes, detalhes que vão enchendo os olhos, a
boca com uma gulosa saliva premonitória.
Numa fase de maior intimidade, o nariz prevê delícias,
aproxima-nos daquilo cuja profundidade queremos alcançar.
Que homem não se sentiu atraído, envolvido pelo mistério
das insinuações de um cheiro feminino, do aroma de
um vinho? Algumas pessoas têm sua sensibilidade atraída
pelo aroma adocicado, outras pelo perfume de flor, outros
pelo cheiro de fruta... Podemos até, ousando, afirmar que
o nariz é sensual.
Os mil e um aromas, identificados nos porões de
nossas lembranças evocam relações secretas que correspondem
a esse buquê. Um gole pausado e generoso traz
finalmente o esperado gozo, que inunda nosso corpo com
um prazeroso calor.
Com o vinho, homem ou mulher podem caminhar na
trilha da fruição. Homem, mulher e vinho fecham o ciclo
do prazer.
O vinho e a sensualidade
humana (1)
Sérgio Inglez de Souza é enófilo,
colunista
e escritor
sergio@
jornalvinhoecia.
com.br

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